Tinho
Amanheceu no velho casebre, Tinho, como era chamado Tiago, isso por ser muito raquítico, olhou para o tecto, podia ver-se as frestas de luz entrando pelo telhado, era tão lindo! O dia seria lindo, remexeu na cama cheio de preguiça, bem que podia dormir mais um bocadinho, mas tinha que levantar-se, logo seria 06:00 da manha, de certa forma agradeceu por ser verão, no inverno era tão doloroso, tão escuro, tão frio, virou para o outro lado da cama e levantou-se rápido, a escola, seu único alento, ah se pudesse juntar as duas coisas! Uh! Pensou, “imagina se pudesse dormir na escola?” Duas coisas boas juntas!
Vestiu as calças desbotadas e a camisola de publicidade, era a única que tinha, ainda bem que tinha ganhado aquela, tinha tido sorte, pensou, sorriu ao lembrar de como tudo tinha acontecido, foi no dia da amostra de Ciencias na escola, o vulcão de fermento fez questão de explodir na sua roupa e a dona Clarissa o levou na sala de aula e o limpou e lhe vestiu a camisola, ela tinha sido tão carinhosa, nunca iria esquecer, depois olhou-o e sorriu:
—Ficou perfeita Tiago, e é bem bonita não acha? Ganhei essa camisola da última vez que doei sangue, é novinha, trouxe-a para uma dessas eventualidades, pode ficar, é tua!
Tinho ficou olhando para a camisola, não se lembrava de já ter tido uma camisola nova, cheirava tão bem! Seus pensamentos foram interrompidos.
—Vamos embora Tinho, já está na hora!
—Ainda não tomei pequeno almoço tio Bento
—Se quer tomar pequeno almoço levante-te mais cedo.
Tinho suspirou, não culpava o tio, ele tinha razão, gastara muito tempo a pensar, esse era o seu defeito, pensava demais, tinha que parar de pensar, afinal de contas o tio já era velhote, já passava dos 65, tinha que ser grato pelo tio e a tia cuidarem dele, afinal de contas não tinham a obrigação, os tios tinham cuidado dele desde bebê, não comentavam sobre o assunto, tudo que sabia era que a mãe, que era sobrinha, tinha vindo passar o final de semana na casa dos tios, dissera ir a aldeia comprar qualquer coisa e nunca mais aparecera, era apenas o que sabia da sua historia, mas não importava-se, tinha um tecto, um prato de comida, e estudava, é claro que sonhava em ter muito mais, os seus colegas tinham tantas coisas giras, telemóveis, jogos, internet em casa, vídeos, ele não tinha nada, mas se divertia mesmo assim, ele também tinha coisas que seus amigos não tinham, nenhum dos seus colegas tinha 3 cães, dois gatos, um monte de passarinhos, imagina a inveja que fazia aos colegas quando contava a eles que tinha também um ribeirão e muitos peixes, enquanto os colegas tinham um pequeno aquário com alguns peixinhos, sorriu sozinho, ele mesmo tinha construindo seu ribeirão, é claro que o tio e a tia não sabiam, arranjara um sitio so seu, era seu pequeno mundo, e isso era o suficiente, tinha seu próprio mundo, sorriu.
—Que foi miúdo? Estas a ficar maluco? — Perguntou o tio irritado
—Não senhor
—Acho bom, porque não tenho mais idade para cuidar de um miúdo maluco.
—Sim senhor.
Chegaram a aldeia, gostava dali, e como não iria gostar? Nunca saira dali, o mais longe que tinha ido era a aldeia seguinte que era um pouco maior que a dele, um dia o tio precisava de um medicamento que não havia na farmácia da aldeia e depois de pega-lo na escola foi ate a outra aldeia, não era muito diferente da dele. Avistou sua escola, que bom! Gostava muito da escola, logo faria 10 anos e a 5 classe, nunca tinha chumbado, tinha as melhores notas da sala, apesar de não ter nada do que os colegas tinham, se esforçava muito, não queria que os tios tivesse mais um peso, mais uma chatice. Sorriu, tinha boas notas porque também tinha ajuda, a dona Clarissa o ajudava muito, mesmo sendo professora de português o ajudava também em todas as matérias, sempre que o tio atrasava para busca-lo ele ficava na sala com dona Clarissa, era tão bom aqueles momentos, se sentia seguro, acolhido, ela era tão bonita, e quando o olhava com aqueles grandes olhos castanhos sentia que nada no mundo poderia chatea-lo.
—Adeus tio.
O tio nem se quer olhou-o, achava bonito aqueles pais que levava os filhos ao portão da escola, lhes abraçavam, lhes davam um beijo, o tio nem se quer adeus, mas tudo bem, o tio tinha muito o que fazer, sentiu o estômago apertar, faltava tanto para a hora do almoço! Tomaria dois copos d´agua e passaria a fome, já sabia desse truque.
—Então Tiago, chegou mais cedo hoje. — Era a maior prenda a primeira cara a ver ser de dona Clarissa.
—Pois, meu tio tinha muito o que fazer aqui na aldeia hoje
—Já tomou pequeno almoço — Tinho hesitou em responder
—Tudo bem, mesmo que já tenha tomado quer tomar de novo comigo? Ou pelo menos faça-me companhia.
Tinho balançou a cabeça energicamente. Pensou em como tinha sorte, quase sempre dona Clarissa o convidava para tomar pequeno almoço, ate parecia que adivinhava, e se ela fosse uma fada madrinha? Era bem capaz de ser, sorriu sozinho, ali estava outra coisa que seus colegas não tinham, uma fada madrinha, sorriu para o grande copo de leite com cacau a sua frente.
Clarissa ficou olhando o miúdo raquítico a sua frente, fazia um esforço imenso para não marear as vistas, como podia o destino fazer aquilo a uma criança? Não era justo, a vida não era justa, queria tanto poder fazer algo, mas tinha as mãos atadas, sabia como os tios o maltratava, por três vezes já tinha levado-o a enfermaria, desmaiara de fome, se denunciasse os tios, o estado tomava o miúdo e talvez nunca mais o visse, se falasse com os tios eles os tirava da escola, para todas as hipóteses que vinham-lhe a cabeça perderia o miúdo de vista, a única coisa que podia fazer era tornar pelo menos 5 dias na semana a sua vidinha um pouco menos cruel. Se pelo menos tivesse um marido, um emprego que ganhasse bem, mas também era sozinha e infeliz, se pudesse poderia adota-lo, mal conseguia gerir sua vidinha medíocre. Lembrou do quartinho escuro em que morava nos fundos da casa de sua madrinha, e das noites solitárias lendo romances baratos e sonhando em um dia encontrar um príncipe encantado, se bem que agora já sonhava menos, tinha apercebido que já fizera 35 anos, como o tempo passara! Pelo menos tinha Tinho. Que egoísta! Podia denunciar os tios, mas não o fazia por egoísmo, não queria perder o miúdo, mas um dia perderia, sabia que perderia! Logo ele faria 10 anos, mais um mês e acabava as aulas, seria um longo verão, solitário e triste! As vistas marearam.
—O que quer de prenda de anos Tiago?
—Nada dona Clarissa, você e sempre tão boa comigo
—Vou ficar chateada se não me disser o que gostaria de ganhar
—Mas não há nada mesmo dona Clarissa — Insistiu Tinho
—É claro que há, sempre há algo que queremos muito, mas achamos que é impossível, eu por exemplo se pudesse fazer um pedido a um génio, sabe o que desejaria Tiago? Desejaria ter uma casa bem grande, com jardins, num sitio bem longe daqui, poder fazer o que eu quiser, e esquecer de todas as coisas ruins que já aconteceram na minha vida. Mas sei que isso é impossível.
—Eu tenho um grande jardim
—É mesmo? Onde?
—No meu sitio secreto — Disse sussurrado ao ouvido de Clarissa — É o meu maior segredo, ninguém sabe disso, você e a primeira pessoa.
— Prometo que não conto a ninguém, é o nosso segredo
—No dia do meus anos poderia ir la passar o dia comigo, seria a melhor prenda do mundo.
—É serio? Não acha que seus tios ficariam chateados?
— Eles não precisam saber, no verão eu saio cedo e eles nem querem saber para aonde vou.
—Combinado, no seus anos temos um dia todo só nosso.
As aulas já iriam começar, Clarissa nem mesmo sabia o que havia feito, prometera a um miúdo passar um dia todo com ele, não devia, era uma fracassada, nunca conseguia fazer nada direito na vida, nem mesmo conseguia terminar de ler um livro todo, lia o inicio o meio e o final, conseguira com muito esforço e incentivo da madrinha fazer o curso de educação infantil e nem era la uma boa educadora, vivia recebendo reclamações da sua chefa, a sorte era que a madrinha e a chefa eram muito amigas, sabia que continuava dando aulas porque a madrinha sempre dava um jeitinho, era um verdadeiro fracasso, a madrinha a aturava porque devia muita obrigações ao falecido pai, que fora medico e cuidara do padrinho ate o ultimo dia de vida, e agora como recompensa cuidava dela, um peso morto.
Será que conseguiria fazer um miúdo feliz no dia nos seus anos? Sentiu um medo terrível, um imenso peso nas costas, poderia estragar tudo, perderia o amor e a admiração que o miúdo sentia por ela, não queria perde-lo, era o único no mundo que não via sua verdadeira cara, a cara de uma fracassada. Suspirou e caminhou em direcção a sala de aula, o que faria agora?
Tinho não podia parar de sorrir, não lembrava-se de ter ganho uma prenda tão especial, nem podia crer, um dia todo com dona Clarissa, era tão linda, tão inteligente e cheirava sempre tão bem! Podia ser logo, ainda iria demorar tanto! 18 dias! Seria os mais longo de toda a sua vida, devia ter dito a ela que gostava da prenda adiantado, mas isso seria demais, ela iria dar-lhe um dia inteiro, com certeza tinha tantas coisas importantes para fazer e abriria mão de tudo por ele, ninguém nunca tinha feito isso por ele, não podia decepciona-la, tinha tanto o que fazer, limpar seu pequeno mundo, arranjar a cabana, arranjar umas flores bem lindas, pena que não teria nada de gostoso, tentaria guardar algumas fatias de pão e um pedaço de queijo, deveria ser o suficiente, como tinha coisas para fazer! Tinha que apontar, será que conseguiria? Suspirou e caminhou em direcção a sala de aula, o que faria agora?
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